Extensão

Projeto promove diálogos sobre literatura com reeducandos

Por Thiago Cardassi Publicado em: 07/06/2023 11:06 | Última atualização: 07/06/2023 16:06

As quintas-feiras se tornaram um dia destinado ao compartilhamento de histórias e vivências entre os reeducandos da penitenciária regional Major Eldo Sá Corrêa, conhecida popularmente como Mata Grande. Desde setembro do ano passado, o Programa de Educação Tutorial, PET Educação Interdisciplinar, da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR) tem promovido encontros voltados à prática da leitura com pessoas vivendo em situação de privação de liberdade.

Nestes encontros, obras da literatura universal protagonizam um diálogo construído conjuntamente entre os estudantes universitários e reeducandos da Escola Estadual Maria de Lima Cadidém, diálogo orientado para o aprendizado e para a transformação da realidade em que vivem. A iniciativa faz parte do programa Tertúlia Dialógica Literária, coordenado pela professora tutora Eglen Silvia Pipi Rodrigues, do curso de pedagogia da UFR, e desenvolvido em parceria com a pedagoga e coordenadora de projetos educacionais da unidade prisional, Creuza Rosa Ribeiro.

A professora Eglen explica que a tertúlia é uma prática de leitura que consiste em um encontro no qual os participantes leem e debatem clássicos da literatura. “Trata-se de uma experiência intersubjetiva, de incorporação das diferentes vozes, vivências e culturas que geram uma compreensão que ultrapassa aquela a que se pode chegar individualmente. É um trabalho que visa a superação da exclusão social, possibilitando criação de sentido e portanto, transformação social”, afirma.

Neste contexto, o objetivo dos encontros não é propor uma interpretação que seja mais correta e profunda do que as outras, mas evocar experiências, emoções e sentidos a partir da prática da leitura. São as maneiras pelas quais a apreciação da obra toca cada um dos participantes do grupo que se tornam objeto de diálogo e reflexão conjunta, mediado por um estudante preparado para organizar a conversa e garantir a predominância de um diálogo igualitário entre os reeducandos.

O projeto constitui-se enquanto uma atividade cultural baseada em princípios da aprendizagem por meio do diálogo. Durante os encontros, a escolha da obra é orientada por um(a) docente que apresenta algumas opções ao grupo. Após um debate, os participantes definem um livro a partir das necessidades apresentadas coletivamente. A cada reunião, um(a) mediador(a) conduz a atividade de forma que todos possam participar de forma igualitária. Os integrantes do grupo então expressam o que mais gostaram e explicam o porquê. Em seguida, abre-se espaço para os comentários. Uma pessoa registra os principais assuntos comentados e os lê ao final da tertúlia, gerando uma memória dos encontros.

Tertúlia Dialógica Literária na Escola Estadual Maria de Lima Cadidé

A estudante Fernanda Madeira, do curso de pedagogia da UFR, participa do projeto e é uma das mediadoras das rodas de conversa. Ela conta que a tertúlia contribui para sua formação acadêmica e promove uma ampliação da percepção de mundo. Segundo a aluna, a experiência “contribui para a formação humana, porque na prática a gente vê que existem diferentes culturas além da nossa. Estar em uma posição de trabalhar com a ressocialização, a partir da leitura clássica, uma escuta sensível, e diálogos que promovam uma discussão, trazem um sentido da vida e um sentido acadêmico”.

Na ocasião da primeira tertúlia realizada na Mata Grande com os reeducandos, logo após o período pandêmico, os participantes escolheram a obra “Prisioneiras”, livro de memórias de Dráuzio Varella. O argumento foi a importância de se conhecer o cotidiano de mulheres em um regime penitenciário. Ao longo dos encontros, os destaques realizados sobre o livro expressavam a diferença entre as realidades masculina e feminina, especificamente no contexto das visitas.

A partir dos diálogos, os participantes puderam discutir a situação das mulheres reeducandas e apontaram que elas possuíam menos assistência para receber visitas conjugais, sendo que algumas famílias pareciam abandoná-las, uma vez que, privadas de liberdade, elas entravam nas penitenciárias incapazes de dar continuidade ao papel social de mãe e mulher. Os participantes ainda levantaram temas e compartilharam suas próprias experiências a respeito do afastamento criado entre eles e seus filhos, sobre pessoas inocentes condenadas injustamente e sobre traumas e problemas psicológicos, como a depressão, que o cárcere gera.

A acadêmica Júlia, do curso de letras – português da UFR conta que, durante os encontros, “ouviu bastante destaque sobre a depressão que o cárcere gera por conta de estarem longe da família […]. A gente também ouviu muito destaque sobre a perda de sentido da mulher por parte da família quando ela entra na penitenciária e não pode mais contribuir com o papel social dela de mãe e cuidadora”, relatou a aluna.

Em 2023, o livro escolhido pelos reeducandos para o primeiro semestre foi a obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. A professora Eglen esclarece que os clássicos da literatura são textos fundantes, ou seja, quebram com uma forma de escrita e inauguram uma nova, podendo servir de inspiração para outras áreas, como a música e o cinema. “São obras que expressam com profundidade os grandes temas humanos, a despeito da época e da cultura, inspirando por isso à reflexão. Por sua qualidade e contribuição ao patrimônio cultural da humanidade, são universalmente reconhecidas”, conclui.

Ao aproximar essa literatura de grupos culturais e sociais que normalmente não teriam contato com ela, também preenche-se uma lacuna cultural importante. Isto aumenta as expectativas, transforma o entorno e abre as portas ao êxito acadêmico. Fernanda Madeira observa que “nós estamos enraizados em uma cultura de que as pessoas privadas de liberdade, elas não tem salvação, elas não precisam mais de apoio […]. E com a tertúlia a gente vê que não é assim. São seres humanos, são pessoas que podem ter visões e perspectivas diferentes”.

A acadêmica Júlia aponta que essa experiência tem sido “muito interessante, […] muito rica de conhecer esse contexto, porque se não fosse a tertúlia, eu acredito que a universidade não teria esse pontapé de conhecer esse grupo vulnerável que, com tanta dificuldade, consegue entrar na escola e conseguir uma formação no momento em que ele sair dali para uma vida melhor”.

Os resultados do projeto renderam estudos e resultaram em um texto apresentado durante o II Congresso de Ensino, Pesquisa, Extensão e Inovação da Universidade Federal de Rondonópolis. O estudo aponta o intuito de levar uma proposta educativa fundamentada na teoria da ação em diálogo, que oferece reflexões para o mundo da vida, oportunizando espaços que possibilitem a construção de relações mais humanizadoras entre todos. Além disso, a atividade foi publicada no ebook de coletâneas do PET Educação Interdisciplinar e do PET Conexões e Saberes.